547 brasileiros desaparecem sem deixar rastro.
Aos parentes, restam uma busca desesperada e o sentimento de impotência diante do inexplicável
Não havia nada de atípico no comportamento do analista de sistemas Mário Fernando Borges, um disciplinado professor universitário de Goiás, no dia em que ele bateu a porta de casa avisando à mãe que visitaria a namorada. Então com 37 anos, Mário nunca mais voltou. Também não foi visto por mais ninguém. Seu repentino sumiço ocorreu em dezembro de 2008. A partir daí, a família lançou-se numa busca tão desesperada quanto infrutífera. Acionou a polícia, contratou detetive particular, espalhou cartazes com a foto de Mário por toda parte - em vão. O desaparecimento segue como um completo mistério, sem nenhuma pista nem razões aparentes. Separado, o analista de sistemas tem um filho, Lucas, hoje com 10 anos, que sempre pergunta à avó: "Quando o papai vai voltar?". E chora. Irmã caçula de Mário, a administradora de empresas Patrícia Borges faz um resumo do drama vivido pela família: "Sabe uma dor que não passa? Ela é um misto de angústia, profunda tristeza e impotência diante do inexplicável".
Histórias como essa têm relevo estatísticos no Brasil, como mostra um abrangente trabalho coordenado pelo sociólogo Djaci de Oliveira, da Universidade Federal de Goiás. O levantamento, que tomou como base os registros em delegacias brasileiras, chegou a um dado espantoso: 200 000 pessoas desaparecem por ano em todo o país. Dá uma média de 547 casos por dia - grupo bastante heterogêneo em que emerge todo tipo de ocorrência. No rol das mais comuns estão aquelas de jovens que fogem de casa (muitas vezes às voltas com alto consumo de drogas e álcool), idosos que sofrem de súbita falta de memória e se põem a vagar sem norte, além das crianças que se perdem dos pais. Chamam atenção também os casos de pessoas que abandonam casa e família, não dão mais notícias e vivem mudando de endereço, até de país. Constatou-se ainda algo surpreendente: os desaparecimentos causados por atos de violência, como sequestros e assassinatos, são minoria. "Esse mosaíco quebra um mito sobre a natureza dos desaparecimentos no Brasil", avalia o professor Djaci de Oliveira.
Existe um traço em comum nas histórias que ilustram esta reportagem o verdadeiro trauma provocado nas famílias. Todas elas comparam sua agonia diante do desaparecimento de um parente à dor do luto, só que sem fim. O assunto vira obsessão e, não raro, destroça a estrutura familiar. Ainda que o tempo passe, às vezes até décadas, continua-se a alimentar a idéia de que o desaparecido baterá a porta, subitamente, da mesma maneira que se foi. Isso mesmo quando a suspeita é de que a pessoa não está mais viva.
Esse é o caso de Priscila Belfort, irmã do lutador Vitor Belfort, que foi vista pela última vez seis anos atrás, ao deixar o prédio onde trabalhava no Rio de Janeiro. Tinha 29 anos. "A policia acha que minha filha foi morta por bandidos, mas tenho a convicção do contrário: um dia ela vai me surpreender como sempre fez, e voltar", diz a mãe da moça, Maria Jovita, Ela faz coro com muitos outros na mesma situação, como lança luz a psicóloga Eliane Bernadelli, especializada em prestar assistência a famílias de desaparecidos. "A morte marca o fim de um ciclo, é uma dor que o tempo se encarrega de suavizar", explica. A incerteza sobre ela, por sua vez, leva a uma angústia permanete - e inesgotável."
As deficiências estatísticas nesse campo não permitem saber, exatamante, quantos dos desaparecimentos são de fato esclarecidos no Brasil - mas há indicativos que eles não são poucos. Uma recente pesquisa conduzida pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), ligado ao governo estadual do Rio de Janeiro, traz números que, afirmam os especialistas, refletem a realidade nacional. O levantamento, que se baseia em ocorrências registradas em delegacias fluminenses em 2007, mostra que, em 72% das vezes o desaparecido foi localizado em menos de um mês. Os restantes 28% compreendem histórias que levam anos para ter um desfecho, quando o têm - em 6% dessas ocorrências, a pessoa desaparecida estava morta. De todos, os casos de mais difícil resolução são aqueles em que um adulto desaparece por vontade própria. Essas pessoas têm um perfil psicológico parecido, conforme já foi mapeado. "São muito frágeis emocionalmente, incapazes de lidar com crises profundas, senão por meio de um ruptura drástica", diz o psicanalista Joel Briman. As que regressam precisam restabelecer os laços com os familiares, gradativamente. É um processo delicado para todos - e vagaroso.
É nesse estágio que se encontra a designer Ingrid Boldoke, 57 anos, que passou uma década à procura do irmão, o técnico em engenharia mecânica Jorge Gustavo, 60. Em 1997, ele sumiu repentinamente da casa onde morava, na cidade de Pontal no Paraná, e nunca mais deu notícias. Exatos dez anos depois Ingrid recebeu um telefonema de Mato Grosso do Sul, no qual um homem dizia estar ao lado de seu irmão. Sofrendo de grave depressão, sem emprego e maltrapilho. Jorge vagava por quatro estados, muitas vezes a pé e sem rumo. Dormia na rua ou em quartos emprestados. Ele perdeu a noção de tempo e da própria dignidade, até um dia cair em si. "Da mesma maneira que me senti compelido a ir embora, quis voltar para a família", relata. Hoje tratando da saúde, Jorge vive com Ingrid e está em busca de emprego. Ela diz: "Meu irmão está tentando reconstruir a vida dele e eu, a minha".
Ao contrário de outros países, não existe no Brasil uma rotina de investigação para esses casos nem treinamento específico para os policiais - que muitas vezes se limitam a registrar a ocorrência. À exceção dos desaparecimentos de menores, em que a ação policial imediata é determinada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, nenhuma lei brasileira trata do assunto. Outro obstáculo diz respeito à falta de um bom cadastro nacional (o primeiro do gênero, sob a alçada do Ministério da Justiça, surgiu há menos de um ano e restringe-se a pouco mais de 500 casos). O Brasil contrasta aí com países como os Estados Unidos - exemplar nessa área. Registram-se lá 700 000 casos por ano. As informações são consolidadas num gigantesco banco de dados do FBI, em que consta até o DNA dos desaparecidos. Quando uma criança some, um sistema nacional está preparado para alertar todos os aeroportos, rodoviárias e postos de polícia americanos. Na ausência de algo parecido, resta às famílias brasileiras tomar a dianteira nas buscas, como fez o engenheiro paulista Antônio Carlos Ratto, 58 anos. Desde que seu filho Lucas desapareceu repentinamente, em 2008, ele não passa um dia sem fazer uma varredura em ONGs e sites especializados. Já espalhou cartazes com a foto do garoto, contratou detetive particular e prometeu 60 000 reais para quem o encontrar. Afirma o engenheiro: " Não vou sossegar enquanto não achar o meu menino".